CARVALHO, José M. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

 

O fato de o Brasil ter tido um ex-presidente sociólogo e a inegável atuação ideológica de vários intelectuais da área de humanidades junto à política real contemporânea, em várias instâncias, não obstante a emancipação e autonomia que são hoje uma conquista indissociável da pesquisa acadêmica, não foram suficientes para justificar a sociologia perante o imaginário popular. Filosofia e sociologia são disciplinas que ainda padecem de questionamentos relativos à sua necessidade junto ao currículo escolar. Estão a ele voltando, uma vez que foram dele retiradas, por conta justamente do seu poder político e da desconfiança quanto às suas possibilidades subversivas, durante a ditadura militar, colocando-se em seu lugar os infames "OSPB" e "EMC". (1) Quem já precisou de um serviço de um sociólogo? – questionam alguns, pensando que qualquer padeiro seria mais presente na vida que um profissional dessas áreas. (2)

 Uma pessoa assim pode andar pelas ruas e praças do centro das capitais brasileiras, como o Rio de Janeiro ou Curitiba, e observar os monumentos sem saber muito acerca do contexto histórico de vários republicanos homenageados, tais como Marechal Deodoro, Marechal Floriano, Benjamin Constant, Silva Jardim ou Rui Barbosa. Exemplos não faltariam uma vez que foi feito um esforço consistente e proposital por parte dos instauradores do novo regime no sentido de fixar símbolos e personagens, em detrimento, inclusive, da memória do regime monarquista. Para entender melhor como ocorreu este processo e destrinchar esse período complexo de transformações a leitura do livro "A Formação das Almas – O imaginário da República no Brasil" de José Murilo de Carvalho, publicado em 1990, em comemoração ao centenário da República brasileira, pode nos fornecer importantes subsídios.

José Murilo de Carvalho é um intelectual mineiro (Andrelândia, 1939) com brilhante trajetória acadêmica no Brasil e exterior e extenso currículo universitário e bibliográfico. Tendo se formado em Sociologia e Ciência Política pela UFMG em 1965, fez pós-graduação nos EUA (Stanford e Michigan) e Inglaterra (Universidade de Londres). Atuou como docente na UFMG, IUPERJ e UFRJ, notadamente. Também foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2004, sucedendo Rachel de Queiroz. (3) Murilo de Carvalho ganhou notoriedade junto ao público a partir do seu estudo "Os Bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi", de 1987. O título do livro refere-se à pouca participação popular na proclamação da República, com seus agentes e atores políticos principais vindos da elite militar, civil e cultural. Além da força e da violência oligárquica, José Murilo pretendeu investigar nesse livro como foi elaborada a ideologia do regime republicano, como foi passada ao povo, com a criação e utilização de utopias, mitos, símbolos, alegorias e rituais, e se isso foi bem sucedido ou não. Escreve José Murilo no capítulo II:

 

"A afirmação do papel dos históricos era importante para garantir aposição dos civis na proclamação e a perspectiva liberal da República. Mas era impossível negar o aspecto militar do evento e o caráter inesperado de sua eclosão. Todos os jornais do Rio registraram esses dois elementos. Um compilador das notícias publicadas nos primeiros dias da República reconhece o sentimento de surpresa unânime, produzido pelo estabelecimento da forma republicana no Brasil". Arthur Azevedo, republicano insuspeito, diz que a expressão de Aristides Lobo – bestificado (sic) _ era de uma propriedade cruel, pois "os cariocas olhavam uns para os outros, pasmados, interrogando-se com os olhos sem dizer palavra". Ao voltar para casa, às duas da madrugada, tudo era calmo e deserto no Rocio (praça Tiradentes). Cantando, quatro garis varriam a Rua do Espírito Santo. Ao vê-los, o teatrólogo pensou: "Esses homens não sabiam, talvez, que naquele dia houvera uma revolução".

Esse episódio aconteceu no Rio de Janeiro, a capital, onde a política era sintetizada e os acontecimentos serviam como caixa de ressonância para o restante da nação. Depois do longo reinado de Dom Pedro II – que ajudou a consolidar o continental território unificado, o que ironicamente teve como consequência o fortalecimento das forças armadas e sua aspiração política revolucionária, era preciso alcançar os rincões distantes do país, além de lidar com os interesses dos republicanos de outros estados geograficamente importantes, Rio Grande do Sul, Minas e São Paulo, principalmente, e combater os resquícios da monarquia junto ao povo e através de seus defensores. O novo regime republicano precisava ser legitimado e os personagens de ideologias diversas atuarem na consolidação dos conceitos da pátria, seguindo ou não o modelo de repúblicas estrangeiras – a americana, com seus "Founding Fathers" e a francesa, e adaptando-os à realidade nacional. A disputa envolvia uma ideologia liberal-democrática contra a aspiração de uma ditadura republicana positivista utópica para uma humanidade mitificada.

Em "utopias republicanas", o capítulo I da obra, o autor delineia as principais correntes envolvidas na disputa: os liberais à moda americana, jacobinos à moda francesa, e positivistas ortodoxos, estes influenciados pela doutrina do filósofo e sociológo francês Auguste Comte (1798 – 1857). Apesar dessa tensão entre os grupos, sabidamente, a marca positivista acabou gravada de forma indelével através do mote inscrito na bandeira nacional, o que é tratado em detalhes no capítulo V, além de serem sempre associados ao período. O modelo de bandeira de inspiração norte-americana proposto por Ruy Barbosa acabou por ser rejeitado, adotando-se a antiga bandeira do Império, representando-se a força da tradição, com a substuição do escudo pelo globo estrelado, além do lema de Comte, retirado de um livro da religião positivista. Este recebeu, já na época, muitas críticas. A Revolução aconteceu sem bandeira e sem hino, como mostra o trecho abaixo:

"O inesperado do 15 de novembro fez com que os participantes não dispusessem de um símbolo próprio para desfilar nas ruas. As tropas insurretas não tinham bandeira. Um sargento do 2º Regimento de Artilharia de São Cristóvão jogou fora a bandeira imperial quando as tropas marchavam para o campo de Santana, não tendo com que a substituir. O movimento republicano, como um todo, não adotara bandeira própria. Como fino, usavam simplesmente a Marselhesa. Poder-se-ia perguntar: se a Marselhesa, por que não também a tricolor, a bandeira da revolução e das repúblicas francesas? É que a Marselhesa era símbolo que extrapolava as fronteiras nacionais, era símbolo universal da revolução, ao passo que a tricolor mantinha as características nacionais. A Marselhesa era a revolução, a república, radical; a tricolor era a França". (pg 110)

Os republicanos tomavam a Marselhesa como um hino revolucionário libertário que ultrapassa os limites nacionais e históricos da Revolução Francesa. No entanto, devido à barreira da língua, chegaram mesmo a propor e instigar a elaboração de uma letra para a versão em português.

Ainda acerca da bandeira, ocorria já um debate sobre o estado laico, uma vez que a presença do Cruzeiro do Sul seria uma homenagem ao legado dos católicos, indesejada por alguns. Os positivistas também propuseram a substituição do calendário gregoriano por um calendário puramente científico, na esperança de desvincular o estado da religião. Todavia, tiveram de admitir que o cenário celeste da bandeira nacional fosse apenas representação simbólica, depois do escrutínio científico em torno da sua precisão astronômica, uma vez que representaria o céu do Rio de Janeiro no dia 15 de novembro de 1889.

Porém, no capítulo III da obra vemos como a figura de Tiradentes foi apropriada como um mártir da República e trabalhada para funcionar em sintonia com a vocação messiânica e heroica, tanto no tratamento iconográfico, com as feições de Cristo padecendo da cruz, sofredor de injustiça, quanto a sua história de percursos da independência, com os signos clássicos, como o de ter sido traído pelo companheiro, ser oriundo de um meio pobre, a humildade sem vaidade diante da tirania. Essa preocupação com a posteridade aparece também no capítulo II, "As proclamações da República", onde se discute a criação de uma versão oficial dos fatos, como aconteceu à revolução e como atuaram os personagens, na tentativa de criar um mito de origem. Aqui, é particularmente interessante a análise de quadros, com a figura do Marechal Deodoro aparecendo sempre na primeira fileira, a cavalo.

Um dos quadros mais famosos no tema da Revolução Francesa, o de Delacroix, está hoje no Museu do Louvre, e mostra a figura feminina da liberdade guiando os revolucionários. A associação da figura da República com uma mulher era comum, no caso, a Marianne com seu barrete frígio, na França. Os republicanos brasileiros tentaram seguir este modelo, mas encontraram dificuldades, devido às discrepâncias culturais entre a sociedade dos dois países, de forma que a República acabou sendo mais facilmente associada à imagem da mulher corrompida, a prostituta. Esta saborosa discussão encontra-se no capítulo IV.

A análise de vários quadros e monumentos (estátuas, bustos) erigidos país afora são algumas das muitas fontes que Murilo de Carvalho utilizou para a discussão do tema e a apresentação da problemática. A extensa bibliografia da pesquisa alcança o fôlego de erudição. Além das referências no corpo do texto e nas notas de rodapé, a seção final elenca as fontes, dividas em jornais e revistas (como o Cruzeiro, O Paiz e a Revista do IHGB), livros (autores como Hanna Arendt, Comte, Coelho Neto, Tobias de Monteiro, Eduardo Prado, Silvio Romero e Visconde de Taunay), artigos, teses e folhetos (Castro Alves, Hobsbawm, J. Stuart Mill sobre Comte), e ilustrações com quadros e imagens que fazem parte da rica edição em papel couchet, sendo algumas coloridas.

José Murilo conclui seu estudo julgando que os positivistas não obtiveram sucesso em sua tentativa de fixar no imaginário popular os elementos simbólicos e ideológicos da República. O sucesso que obtiveram, para ele, derivou na herança da autoridade do Imperador ou com os elementos religiosos, como é o caso do Tiradentes "cristo". Os liberais instruídos dos quais fala Miguel Lemos no capítulo VI (pg 136), cujas ações tornavam-se a ordem do dia, julgavam que a situação do Brasil era muito precária e um intenso processo de transformação deveria despontar. O país ainda campestre não contava com um proletariado nos moldes da doutrina bolchevique. Já a emancipação feminina e católica era vista com otimismo para a recepção das ideias de vanguarda.

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